sábado, 17 de outubro de 2009

O nosso Wottle e... venha a Bósnia!

1. QUEIROZ É O NOSSO WOTTLE

Carlos Queiroz faz-me lembrar Dave Wottle. Sim, sei bem que apenas 0,0000001 da população portuguesa saberá quem é Dave Wottle. Por isso, aqui fica uma dica: vão ao youtube e coloquem "1972 Olympic 800m Final". Façam clique e observem. Aos 14 segundos do filme vão ver um rapazola magríssimo, branquíssimo, com uns calções a baloiçarem-lhe na cintura e um chapéu ridículo por cima dos cabelos louros. Agora, vejam o vídeo até ao fim: é (como já perceberam) a final dos 800 metros dos Jogos Olímpicos de Munique, em 1972. Vejam lá se o bom do Wottle não parece Carlos Queiroz. Sempre sem esperança, sempre a correr atrás de todos e, de repente, pertinho do fim da prova, talvez pelos 550 metros, começa a passar adversários e, pimba, em cima da linha de meta, sagra-se campeão olímpico.

É assim que vejo a qualificação portuguesa para o play-off, aqui personificada em Carlos Queiroz: partir muito bem (4-0 a Malta, em La Valetta), perder metros atrás de metros de seguida (derrota em casa com a Dinamarca, empates de rajada com Suécia, Albânia e Dinamarca e, pelo meio, aquela clamorosa goleada 2-6 com o Brasil), mas recuperar muito bem no final (dupla vitória sobre a Hungria e triunfo sobre Malta). Agora, Queiroz está como Wottle estava no minuto 2.15 do vídeo do youtube: pertinho de ganhar a qualificação para a África do Sul, mas sem a ter ganho ainda. Falta o play-off.

2. SCOLARI FOI O NOSSO PSICÓLOGO

A herança de Carlos Queiroz foi complicada. Luiz Felipe Scolari teve quase ano e meio para preparar o Euro-2004. Entre Fevereiro de 2003 (derrota com a Itália, 0-1) e Junho de 2003 (goleada à Bolívia, 4-0) fez múltiplas experiências (mais de 50 utilizados até à final com a Grécia), apostou em alvos errados (Ricardo Rocha, Jorge Ribeiro, Luís Loureiro, Silas ou Rogério Matias), afastou algumas vacas sagradas das anteriores gestões (Vítor Baía e João Vieira Pinto e, mais tarde, Sérgio Conceição acima de todos) e, numa primeira fase, colocou todas as fichas em meia dúzia de outros, começando a construir a chamada família-Scolari: Fernando Couto, Luís Figo, Rui Costa, Pauleta, Jorge Andrade, Nuno Gomes, Simão e, sobretudo, Ricardo. Só na época seguinte, 2003/04, tudo se começou a definir. O núcleo-duro era o mesmo e só mais tarde, a conta-gotas, apostou na titularidade de homens que, em breve, seriam decisivos: Deco, Ricardo Carvalho, Paulo Ferreira, Nuno Valente, Costinha, Maniche e Cristiano Ronaldo, por exemplo.

Há quem fale de Luiz Felipe Scolari como um grande psicólogo misturado com um mediano treinador de campo. Partilho dessa opinião. O brasileiro tem mérito nos bons resultados de Portugal (segundo no Euro-2004 e quarto no Mundial-2006) neste início de Século, mas esse mérito assenta, sobretudo, na sua capacidade aglutinadora. Quem colocou as bandeirinhas nas janelas? Ele. Quem ajudou a lotar os estádios? Ele. Quem aumentou a auto-estima dos portugueses? Ele. Quem colocou os jogadores em forma? José Mourinho. Sim, se recuarmos cinco anos, vemos que só a custo, depois de muita casmurrice, Scolari aceitou a titularidade de Ricardo Carvalho, Nuno Valente, Costinha ou Deco. E quando aceitou, tudo mudou. Scolari é bom treinador? Sim, é. E é bom psicólogo? Não. É óptimo.

3. QUEM VIER ATRÁS, FECHE A PORTA

Se houve algo com o qual Luiz Felipe Scolari nunca se preocupou foi descobrir ouro onde ouro não havia. Por isso, quando Queiroz recebeu o testemunho de Scolari, a selecção não era uma selecção, era um conjunto de jogadores: não havia Fernando Couto, Rui Costa, Figo, Pauleta, Costinha ou Nuno Valente. Que recebeu Queiroz de Scolari? Ronaldo, Deco e Simão muito mais consistentes, mas sem um guarda-redes de nível médio, sem lateral-esquerdo razoável e com muitas dificuldades para encontrar um homem-golo.

Sem a almofada de não ter de se qualificar que teve Scolari (apuramento directo para o Euro-2004), Carlos Queiroz entrou em campo como antes tinham entrado António Oliveira ou Humberto Coelho: ter de ganhar jogos para chegar à África do Sul. Por isso, quase não houve tempo para experiências. As que fez (Antunes, Carlos Martins, Manuel Fernandes ou Daniel Fernandes) não resultaram e Queiroz teve de reformular muita coisa: Eduardo e Duda a titulares, Pepe à frente da defesa e, mais recentemente, a absorção do luso-brasileiro Liedson. "Quem vier atrás que feche a porta", terá pensado Luiz Felipe Scolari quando abandonou a selecção e abalou para o Chelsea. Queiroz fechou a porta, sofreu em silêncio por força da sua escassa capacidade de galvanizar o povo português, passou por momentos inacreditáveis (a derrota com a Dinamarca em Alvalade, o empate com a Albânia em Braga...) e só há meia dúzia de dias, já com 3-0 no marcador frente à Hungria, se viu um sorriso rasgado na cara do homem nascido em 1953 em Nampula (Moçambique): a selecção portuguesa estava, finalmente, no 2.º lugar do Grupo 1 e a depender apenas de si próprio para chegar à fase final do Mundial. Depois, com o 4-0 a Malta, resta esperar pelo play-off.

4. VENHA A BÓSNIA!

Carlos Queiroz parece ter encontrado, enfim, o seu núcleo-duro, a sua família: Eduardo, Bosingwa, Bruno Alves, Ricardo Carvalho, Duda, Pepe, Tiago, João Moutinho, Rolando, Raul Meireles, Deco, Simão, Nani, Cristiano Ronaldo e Liedson, por exemplo. Daqui a menos de um mês há duplo jogo de apuramento para a fase final do Mundial e é neste grupo que o seleccionador vai apostar. E ganhou ainda mais duas boas soluções: Pedro Mendes a meio-campo, Miguel Veloso a médio ou defesa-esquerdo.

Com quem preferirá Queiroz jogar? Ucrânia, Bósnia, República da Irlanda ou Eslovénia? Ninguém sabe. Queiroz deve ter preferência, mas nunca as dirá. Aposto o meu ordenado que ele não quer jogar com a Ucrânia (viagem muito desgastante, eventualmente frio e neve e... Shevchenko) ou com a República da Irlanda (ser eliminado por Trapattoni, de 70 anos, não seria agradável). Ficam Bósnia e Eslovénia. Eu, se fosse seleccionador, queria a Bósnia. Se vamos para uma guerra, há que entrar num ambiente de guerra. Venha, então, a Bósnia. E depois a África do Sul.

Crónica de Rogério Azevedo, jornalista do jornal A BOLA, para o FUTEBOLÊS