domingo, 29 de agosto de 2010

Entrevista Pedro Azevedo: "Faltou liderança a Queiroz"



África do Sul recebeu o Mundial 2010. Foi uma escolha polémica, motivando desconfianças, apreensão maior do que nunca, chegaram sinais de impreparação. À medida que os dias passaram, com a paixão genuína dos africanos dominando, África do Sul fez por merecer ter as principais estrelas junto de si, deu tudo o que podia, mostrou-se à altura. Para os jornalistas, também. Pedro Azevedo, um dos enviados-especiais da Rádio Renascença, assegura: surpreendeu, foi o melhor Mundial em que esteve, mostrou capacidade para quebrar as dúvidas e receber um evento desta grandeza. Em entrevista ao FUTEBOLÊS, Pedro Azevedo faz um apanhado da presença na África do Sul, em termos globais, mas sobretudo uma análise à participação portuguesa. Portugal cumpriu apenas os serviços mínimos, não mostrou todo o seu potencial e Carlos Queiroz ficou no epicentro da polémica.

FUTEBOLÊS: África do Sul esteve à altura do Mundial 2010?

PEDRO AZEVEDO: Em alguns aspectos esteve. Aliás, África do Sul surpreendeu-me pela positiva em algumas coisas. Noutras já contava. Surpreendeu-me sob o ponto de vista organizativo, a logística esteve muito bem montada - é verdade que eles contrataram empresas estrangeiras para colaborar, como teria de ser. Existiu um aspecto importante, também, que não diz muito respeito à rádio, mas ajuda, porque houve muita gente que assistiu aos jogos ouvindo a rádio: as transmissões televisivas foram de grande qualidade e beneficiaram quem assistiu aos jogos do Campeonato do Mundo - foi uma empresa francesa a responsável por essa operação. Para os jornalistas, dentro dos estádios, as acessibilidades, os nossos postos de trabalho, as facilidades concedidas, designadamente em termos da cedência dos espaços, internet... Tivemos condições de trabalho muito boas. Fiquei surpreendido pela positiva.

F: Embora tenha havido um lado mau...
PA: Já não gostei de outros aspectos que dizem, naturalmente, respeito à segurança. Sentiu-se alguma insegurança. Aí as selecções tiveram algumas responsabilidades, designadamente a portuguesa, porque o estágio foi realizado praticamente no mato, em cidades distantes dos principais centros da África do Sul, o que deu alguma insegurança às comitivas, como foi o caso da nossa. Os jornalistas sentiram isso na pele. O assalto a jornalistas portugueses aconteceu muito perto do meu hotel - um lodge exactamente igual ao que se deu esse assalto - e era perfeitamente evitável que tivesse acontecido, se as selecções tivessem escolhido, designadamente o professor Carlos Queiroz, um local mais apropriado para a realização do estágio.

F: Coreia, Alemanha ou África do Sul: qual foi o melhor Mundial em que esteve?
PA: Este foi o melhor de todos. Em condições de trabalho superou o da Alemanha: as nossas posições nos estádios para a realização dos relatos eram melhores do que no Mundial 2006, as facilidades dos contactos com Lisboa, muito mais rápidos, e a tecnologia também evoluiu quatro anos - isso é importante que se diga. Sob o ponto de vista das condições de trabalho para os jornalistas, foi o melhor Campeonato do Mundo em que eu estive. Muito melhor do que o de 2006, muito, muito, muito melhor do que o de 2002.

F: Até onde pode ir o patriotismo de um jornalista? Cair no chauvinismo é uma tentação?
PA:
Não, não, não. O jornalista tem a sua nacionalidade e está lá para dar, essencialmente, notícias da selecção do país onde os ouvintes estão a escutá-lo. A incidência da informação é Portugal, mas tem que ser uma informação rigorosa, séria, claro que sem chauvinismos, sem exageros, sem qualquer tipo de tendência exacerbada pela selecção. E mesmo durante os relatos, que eu sempre disse, e mantenho, que o relato é uma mistura de informação e espectáculo, também é importante que se dê um certo entusiasmo às cores nacionais, tornar aquele vermelho e aquele verde duas tonalidades mais interessantes e coloridas, que as pessoas ouçam com agrado, porque, no fundo, nós, jornalistas portugueses, também queremos que Portugal ganhe. Agora, o querer é uma coisa e não se pode confundir e misturar com isenção e com o rigor da informação.


UMA SELECÇÃO CINZENTA E SEM LIDERANÇA



F: Aproveitando a questão da tonalidade: a selecção foi cinzenta?
PA: Foi muito cinzenta, foi. A selecção foi muito cinzenta. O jogo com a Costa do Marfim foi um deserto de ideias, o jogo com Brasil foi um deserto de ideias, o jogo da Espanha idem aspas. A excepção foi a Coreia do Norte, que era uma equipa teoricamente muito mais fraca, mas curiosamente quando o marcador ainda estava equilibrado teve boas oportunidades para se adiantar e até para surpreender Portugal. A Coreia entrou com muita sobranceria, porque fez um bom jogo com o Brasil e convenceu-se de que poderia ganhar a Portugal, foi esse o seu problema. Caso contrário, apesar dos sete-zero, a selecção portuguesa se calhar até nem teria ganho à Coreia do Norte.

F: A selecção viveu no oito, saltou para o oitenta e regressou ao início.
PA: A ideia que eu tenho da selecção portuguesa neste Campeonato do Mundo, muito por culpa do seleccionador, do actual... (actual, que já nem é actual, o seleccionador suspenso!...) é que Portugal tem um sistema de jogo de pontapé para a frente. É o sistema do tranco e barranco! Portugal joga para o Ronaldo correr atrás da bola, o que é um sistema completamente inadequado para as características do principal jogador de Portugal e do Mundo, neste campo a par do Messi. A selecção portuguesa teria de jogar para o Ronaldo, mas de uma forma diferente, sem o obrigar a correr desenfreadamente, tipo Obikwelu, atrás da bola. Não pode ser. Portanto, esse tipo de jogo limitou muito a selecção portuguesa, porque é um estilo que favorece quem defende, o pontapé para a frente para a corrida do Ronaldo beneficia claramente o defesa adversário. Por isso, Portugal ficou completamente manietado, teve poucas ocasiões de golo nos três jogos que citei, fora a Coreia do Norte. Foi uma equipa muito cinzenta, muito abúlica e que, na minha opinião, regrediu com a aposta que a Federação fez no Carlos Queiroz.

F: Então é justo considerar como um fracasso a prestação de Portugal?
PA: Para mim, este Campeonato do Mundo, foi um fracasso. É fácil dizer como o Carlos Queiroz: é natural perdermos com a Espanha por uma bola a zero. Não é só esta derrota que tem que ser avaliada. Têm que ser avaliados quatro jogos, o rendimento da equipa nessas partidas e o sistema utilizado pelo Carlos Queiroz. Diria que Portugal tem um sistema inadequado e um estilo de jogo que só por si, na minha opinião, motiva o afastamento do seleccionador: o estilo não é compatível com os jogadores. É completamente desapropriado.

F: Carlos Queiroz é o principal culpado?
PA: A equipa técnica, neste caso o Carlos Queiroz, é a principal culpada desta prestação negativa, muito cinzenta e sem graça, que Portugal teve neste Campeonato do Mundo.

F: O que seria positivo?
PA: Espectáculos convincentes, jogos em que Portugal impusesse um estilo de jogo compatível com a qualidade dos jogadores que tem e que não modificasse três/quatro jogadores por jogo, porque é impossível assimilar processos, criar rotinas e manter a mesma bitola em termos qualitativos. Foi o que o Carlos Queiroz fez. Ainda estamos hoje por saber a razão para o Nani ter saído da selecção...

F: Como é possível que tenha passado tanto tempo despercebido?
PA: As explicações ainda não foram convincentes, aliás os médicos da selecção ainda não explicaram a lesão, o que também se estranha, como é óbvio, não colocando em causa a honestidade de ninguém. Mas é estranho. Nani era o jogador em melhor forma antes do Campeonato do Mundo, melhor do que Ronaldo, Simão ou do que qualquer outro jogador da linha atacante, era uma grande esperança de Portugal e vai ser um dos principais jogadores do Manchester United e da Premier League nesta nova época, não tenho dúvida. Ninguém percebeu. Como também ninguém entendeu a chamada de Pepe.



F: O que falhou na África do Sul?
PA: O processo começou todo inquinado. Desde a trapalhada de uma convocatória de cinquenta pré-convocados que, afinal, não eram cinquenta, passaram a ser cinquenta e um, porque houve um jogador [Manuel Fernandes] que foi esquecido nesses cinquenta, que depois passou a figurar num grupo de seis de um lote final de vinte e três que, afinal, eram vinte e quatro, e depois passaram a vinte e três. Essa trapalhada deu origem a vinte e sete insatisfeitos, porque é a diferença entre os eleitos e os pré-convocados. Portugal foi a única selecção do Mundo que anunciou cinquenta pré-convocados, criando falsas expectativas a alguns jogadores, o que eu acho lamentável, a FIFA obriga apenas à divulgação de trinta nomes - sete de reserva e vinte e três efectivos. Era desnecessária aquela lista perfeitamente desapropriada, inadequada, descontextualizada. Daqueles tais cinquenta nomes, alguns deles nunca figuraram na selecção, nem em estágios nem em convocatórias, absolutamente nada...

F: Isso ainda à partida.
PA: Depois, a chamada de Rúben Amorim para o lugar de Nani também ninguém percebeu, são jogadores completamente diferentes, posições diferentes... O Rúben Amorim chega ao estágio da selecção depois de ter interrompido as férias, presumo que no Dubai, e, ao fim de dois dias e algumas horas, joga depois de uma lesão de Raúl Meireles, deixando de fora, por exemplo, Miguel Veloso, que actua na mesma posição e que estava desde o início do estágio na Covilhã. Portanto, eu pergunto: como é que se ganha um grupo quando um jogador chega há dois dias e é utilizado em detrimento de outro que joga no mesmo lugar e tem todos os dias de estágio? Como é que se consegue impor liderança quando se tomam decisões destas?

F: A falta de liderança terá sido o ponto de partida para o fracasso?
PA: Sim! Carlos Queiroz poderá ser um bom número dois. Aliás, os bons trabalhos que tem como treinador de equipas seniores são assim, não conheço nenhum trabalho do Carlos Queiroz numa equipa senior como número um, não conheço!... Acho que são dados que provam que ele não tem esse dom: Carlos Queiroz não tem o dom de ser um bom número um! Poderá ter de ser um bom número dois, até acredito que o seja, porque é um especialista reconhecido em metodologia de treino. Foi sempre esta a minha ideia, mantenho e os resultados estão à vista de toda a gente. Também não concordo que o Agostinho Oliveira tenha assumido de uma forma interina a selecção, como não concordaria se fosse qualquer um dos outros actuais adjuntos do Carlos Queiroz. Teria de passar por outra solução. O Agostinho Oliveira disse em sede de inquérito [repete, levantando o tom], está escrito, que tomaria a mesma atitude que o Carlos Queiroz perante a situação relacionada com a visita dos médicos do controlo anti-doping. Se o Carlos Queiroz é suspenso pela atitude que teve, o Agostinho Oliveira, num critério igual, também não poderia assumir a selecção.

F: Como se explica a existência de tantos conflitos envolvendo o seleccionador?
PA: O problema que acontece é que a Federação não quer ficar com o Carlos Queiroz e a indemnização é superior a três milhões de euros, é muito cara. E a Federação começou por arranjar este "instrumento" de despedimento, que seria a justa causa por estas injúrias - provadas! - aos médicos do anti-doping, para evitar a indemnização. Está claro que a Federação não quer o professor Carlos Queiroz. Também não percebi esta suspensão de um mês, porque numa reunião da Direcção da Federação tinha ficado decidido por unanimidade que Carlos Queiroz seria afastado, na reunião seguinte o caso foi entregue ao Conselho de Disciplina e, afinal, na terceira reunião a Federação decidiu ratificar a decisão tomada pelos órgãos disciplinares colocando-a em prática com o afastamento de um mês e multa de mil euros. Não percebi. Portanto, isto de facto é uma trapalhada. E terá de redundar na saída do professor Carlos Queiroz: nunca mais será seleccionador, não tenho dúvida absolutamente nenhuma, pelo menos enquanto estes dirigentes lá estiverem e vamos andar de processo em processo. [Irónico] Como um mês é pouco tempo de suspensão, há que afastar mais tempo, agora há outro processo devido a uma entrevista ao Expresso, depois deste processo ainda haverá mais qualquer coisa...

F: As condições de continuidade do seleccionador esfumaram-se?
PA: Eu estou convencidíssimo que o professor Carlos Queiroz não tem condições nenhumas para voltar a ser seleccionador. Ponto um: a Federação não quer que Carlos Queiroz continue como seleccionador. A Direcção federativa, por unanimidade, até já terá tido essa decisão, ou pelo menos terá desenvolvido essa ideia numa reunião que aconteceu antes da decisão do Conselho de Disciplina. Ponto dois: Carlos Queiroz não tem condições para continuar. Foi confrontado durante o Campeonato do Mundo directamente por alguns jogadores pelas decisões que tomou - Cristiano Ronaldo, Pepe e Simão Sabrosa, que agora acaba de renunciar - e, portanto, Carlos Queiroz não possui condições para continuar a liderar a selecção portuguesa. Não tem. E na possibilidade académica de o Carlos Queiroz terminar o castigo e regressar à selecção: como é que um grupo de jogadores pode respeitar um líder que até foi castigado pela entidade patronal recentemente? Isto não tem ponta por onde se lhe pegue.

F: A Federação não deveria, a bem do futebol português, ter tomado uma atitude mais frontal?
PA: Acho que a Federação deveria ter optado por uma decisão salomónica, deveria ter chamado o seleccionador nacional e deveria ter dito: nós não estamos interessados na sua continuidade, não nos agradou o seu trabalho, a indemnização é xis e vamos tentar um acordo que possa subtrair algum dinheiro àquilo que está estabelecido contratualmente, chegando a uma rescisão amigável. A selecção portuguesa de futebol é de todos os portugueses. Se a Federação fizesse uma sondagem e a divulgasse ao professor Carlos Queiroz, eu estou convencido de que oitenta ou noventa por cento da população portuguesa quereria o afastamento do seleccionador. Explicar isto ao professor Carlos Queiroz, fazendo-lhe ver que o ambiente nunca mais poderia ser o que era depois do que aconteceu no Campeonato do Mundo pelas decisões dele - da trapalhada da convocatória aos problemas com os médicos do controlo anti-doping e no relacionamento com dirigentes da Federação e com jogadores - tentando chegar a um entendimento. Acho que era a forma mais digna de as pessoas, quer da Federação - que representa, repito, todos os adeptos portugueses - quer do Carlos Queiroz.

F: Portanto, há erros de ambas as partes?
PA: Sem dúvida nenhuma. Ambos falharam.

NOTA: A entrevista tem continuação. Na segunda parte, num olhar ao futuro, em reflexão a próxima edição do campeonato português.

2 comentários:

Anónimo disse...

Há muitos anos que escuto o Pedro Azevedo, através da Rádio Renascença. É ele que me faz chegar primeiro as incidências dos jogos de quando a minha equipa joga. E faz-o como ninguém, com uma emoção que se apodera de quem o ouve. E nas edições de Bola Branca, com as notícias mais frescas e credíveis.

Foi com total agrado que pude ler esta entrevista, sob um ponto de vista do qual partilho. Acho que nenhum jornalista teve coragem de ser tão frontal e sério com esta situação como foi o Pedro Azevedo. Sobretudo em distanciar o Carlos Queiróz no Mundial e o Carlos Queiróz neste pós-Mundial com os processos à mistura. E aproveito para o felicitar pelo intenso trabalho que realizou na África do Sul. Simplesmente incansável.

Fico à espera da segunda parte da entrevista e à espera também que o Pedro Azevedo faça o mesmo que tem feito neste início de época, porque assim o obrigam - que cante muitos golos do FC Porto.

Comprimentos ao próprio extensíveis ao entrevistador,
Francisco Silva

JornalSóDesporto disse...

Caro Ricardo Costa parabéns grande entrevista.