quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Opinião: O estado de anarquia português



ἀναρχος
. Não há erro. O texto começa mesmo assim:
ἀναρχος. Sem pensar muito, olhando como quem não pesca nada de Grego e tem mais do que fazer do que procurar, aquilo é só uma confusão. Estão ali umas letras juntas e não passa disso. Representa, na tradução literal, anarquia. Desgoverno, desorientação, caos. É a palavra ideal para a selecção portuguesa. Vive intranquila, na indefinição, na dúvida que atormenta e tolda os pensamentos e rasga a harmonia com sombras de guerrilhas internas. Aos soldados, sem sargento e sem general, tudo lhes acontece, têm qualidade reconhecida mas que desaparece envolvida em tantos problemas, jogam sob brasas. Portugal empata a quem sempre ganhou, empata com quem nunca cedeu qualquer ponto. Chipre e Noruega, adversários mais fracos, terminam por cima, sorriem, eles próprios esperavam mais. O que se passa com a selecção portuguesa?

Se alguma coisa pode dar errado, dará. Edward Murphy era um homem de ciência. Trabalhava em engenharia, verificava a segurança das aeronaves, fazia experiências e vivia no risco. Teve a frase que abre este parágrafo. Pura e dura, sem rodeios, clara como se quer. Murphy não devia ter grande tempo para futebol. Nem isso interessa. Mas a sua frase aplica-se na perfeição. Portugal está a senti-lo. Não perdeu qualidade. Só que não a demonstra, está triste, cinzentão, sem saber para onde se virar. Não tem rasgo, não tem ideias, não tem chama. No meio disso que, nos problemas em que está submersa até ao pescoço, a selecção portuguesa ainda é amaldiçoada pela Lei de Murphy. Tudo lhe acontece: falhas individuais, erros descomunais de quem antes garantira sucesso, mais um problema externo e desorientação técnica. É uma equipa partida, sem rumo, incapacitada para lutar. Está entregue à sua sorte.

Nos gabinetes, na preparação para as lutas, Gilberto Madail é um general apagado, combalido, cada vez mais distante dos seus soldados. É titubeante, não se apresenta decidido para se impor e mostrar que ainda pode continuar a liderar. Carlos Queiroz, envolvido em conflitos com os seus superiores e com quem devia ser seu aliado, não comanda o seu exército, viu ser delegadas as funções em alguém da sua confiança, está demasiado longe. No relvado, o caos reflecte-se: Portugal não é unido, vive de momentos de inspiração, que são apenas isso: momentos, não tem aquele golpe de asa capaz de resolver e é uma equipa demasiado distante. Eduardo treme como nunca tremeu na baliza da selecção nacional, a defesa erra em catadupa, o meio-campo é engolido pelos adversários, apesar da valia dos seus jogadores, o ataque está só. Falta ligação entre as linhas, falta formar um conjunto sólido, falta encarar os jogos com maior audácia.

No fundo, tudo aquilo que se vê no campo, aquele estado de ansiedade e de desorientação, é o que se vive por fora. A selecção, não escudando os seus jogadores, como qualquer líder pretende fazer aos seus soldados para que tenha sucesso na sua missão, permitiu que o desnorte exterior se instalasse no relvado, batesse forte, tapando saídas e queimando soluções, para deixar marcas. Agostinho Oliveira saltou para a ribalta, quis mostrar capacidade. Gilberto Madail deu o ar da sua graça: esta equipa joga em piloto-automático. Quis mostrar confiança nos jogadores: têm qualidade, com ou sem treinador, com ou sem plano, Portugal vai ganhar, porque é melhor, deixando para trás esta fase má. Ao mesmo tempo, o panorama desanuvia, a polémica abranda e, por momentos, até se esquece esta trapalhada imensa. Só que deu mau resultado. Portugal empatou e perdeu, fez História pela negativa, agudizou a sua tormenta.

Ter qualidade não é sinónimo de ter sucesso. O Chipre e a Noruega, sabendo viver com o estigma de que uma derrota seria perfeitamente normal ante uma selecção com jogadores da valia dos portugueses, uniram-se, foram verdadeiras equipas, deixaram a última gota de suor em campo e aproveitaram os erros alheios. O tal piloto-automático deveria ser imune a isso, infalível e capacitado para resolver todos os problemas com facilidade. Edward Murphy, nestas coisas de aviação, já tem uma opinião fundamentada, sabe do que fala, é perito. Vamos recordar: se uma coisa pode dar para o torto, numa fase crítica, dará certamente. Madail meteu os pés pelas mãos, Agostinho Oliveira disse que ele é que era o piloto-automático, mais valia não ter dito nada, e saiu, do nada, mais uma frase para marcar o estado da selecção: patético, sem nexo, infeliz. Onze jogadores em campo, uma bola, vitória no bolso: era bom, não era?

O futebol é jogado por homens, junta egos e emoções, vivem estados de espírito diferentes em cada momento. O segredo, que na prática não é segredo nenhum, está em juntar tudo isso, unir a qualidade deste e as potencialidades do outro, para que se apoiem e disfarcem as fragilidades que todos têm, criando uma equipa forte. Chipre e Noruega são modestos mas a entrega suplanta as debilidades. Portugal é o contrário. Tem bons jogadores, Nani e Quaresma aproveitam a ausência de Ronaldo para se assumirem, mas falta-lhe o fio condutor que o leve à vitória. Agostinho Oliveira prepara o jogo, conhece o adversário, alerta para os seus perigos e lança os jogadores para o relvado. Vai para o banco, cruza os braços e olha. A equipa não dá a resposta necessária, fraqueja, pede uma reacção rápida e sangue novo. O treinador tarda a mudar. Não arrisca. Cumpre o plano, só. Falta a intuição de, no momento fatal, agir sem receio.

A produção da selecção de um lado. Está a incapacidade de Nani, Quaresma, Raúl Meireles ou Eduardo para evitarem os resultados que envergonham. As polémicas do outro. Surge a saga das polémicas, as responsabilidades que todos apontam ao outro mas ninguém assume as suas, a margem de manobra nula para Carlos Queiroz, Gilberto Madail e Amândio de Carvalho, seja lá por que motivo for, com Laurentino Dias e Luís Horta sempre no centro da questão. São coisas distintas, sim, mas confundem-se no relvado: a selecção, à mercê de tudo, revela os problemas que a assolam, não se liberta dos fantasmas, leva-os ao expoente máximo e a ampulheta marca o fim do tempo. O empate com o Chipre mostrou-o, a derrota na Noruega foi a confirmação que faltava. Toque a reunir, basta!, decisões urgentes, renovação necessária e nova postura: há que correr em busca do apuramento. Isso é o mais importante. A guerra é longa. Ainda bem.

ACTUALIZAÇÃO: Durante o dia de hoje, quinta-feira, a Federação Portuguesa de Futebol, após várias horas de reunião, decidiu quebrar o contrato com Carlos Queiroz. O projecto fica pela metade. Mas não restava nenhuma outra solução. Trata-se, contudo, apenas do princípio. Em breve, mais nomes abandonarão, a própria Direcção convocou eleições, Gilberto Madail, apesar de se manter por agora, também tem o seu lugar por um fio. Portugal precisa, repete-se, de uma renovação rápida, frontal, colocando novas pessoas e repensando o seu rumo. Discutir as ideias, os métodos e a postura é fundamental. Sempre com o apuramento para o Europeu de 2012 como pano de fundo.

1 comentário:

JornalSóDesporto disse...

Acho que há muito que este desporto em Portugal devia ter sido limpo pois convocar jogadores pelo nome e não pela forma e não convocar outros só porque é do Leixões não se faz.