segunda-feira, 28 de junho de 2010

Opinião: O jogo ingrato que vinga ao inverter os papéis



Curto e grosso: o futebol é um jogo ingrato. A frase, batida e gasta, faz todo o sentido. É um jogo de sorte, onde nem sempre os melhores vencem, a justiça e o mérito podem até ficar para trás. O fim justifica os meios. Jogar bem ou não, é relativo. Se isso der vitórias, óptimo: pode juntar-se o bom futebol aos resultados. Se não der, para alguém que queira mesmo ganhar, a estética do futebol atira-se para o lado - o importante é triunfar. Qualquer adepto quer que a sua equipa ganhe sempre. Um, dois, três, vinte anos seguidos. Limpar tudo. O que se pode tornar uma monotonia. A piada de qualquer competição, das que façam realmente jus ao nome, passa por haver vários concorrentes fortes. Uns ganham, sorriem, pulam de alegria. Os outros, vencidos, baixam a cabeça, choram e revoltam-se. Logo a seguir, esses mesmos dois rivais, invertem os papéis.


Essa ingratidão - aí está a palavra acertada: ingratidão - do futebol é capaz de construir heróis e de os atirar para a penumbra num fechar de olhos, eleva as equipas à glória e logo as faz cair (não é descer, é cair com estrondo) do pedestal, faz com que uma equipa se farte de correr e outra, que sempre esteve à sombra, ganhe num golo saído sabe-se lá de onde. É por isso que nunca gostei de ver a Itália jogar. Pode ser exímia em termos tácticos, a movimentar as peças, a sufocar o adversário quando parece que está entre a vida e a morte. Parece que se está a pôr a jeito e, quando damos conta, tem as mãos nos troféus. É uma equipa cínica, matreira, viperina. Tira a paixão do futebol, dá-lhe um toque de xadrez. Não gosto, confesso. Estar no limbo e conseguir sucesso foi um método usado muitas vezes. Agora falhou. Alguma vez seria.

Depois há outras equipas que jogam, que fazem o verdadeiro futebol, que maravilham qualquer adepto. Mesmo sem nunca termos contactado com a sua realidade, estamos ali colados à televisão. E vibramos com os golos. Saltamos, gritamos, como se fosse um golo do nosso clube. E, no entanto, não é. Mas o futebol foi capaz de nos envolver, de apaixonar, de ser realmente marcante. É aí, a quem mais merece ganhar, que aparece a ingratidão. Ou injustiça, chame-lhe, leitor, o que entender. Já reparou que grande parte das equipas que melhor jogam não ganham títulos? Não é injusto? É, mil vezes injusto. Mas há por aí quem diga que a justiça demora, demora um tempo infinito, mas não falha. No futebol, por vezes, também é assim. Tudo isso para que não sejam sempre os mesmos a rir por último. Tem uma pitada de ironia.

A Inglaterra, apesar de ser há muito uma potência do futebol internacional, só conta com um título mundial. Ganhou-o quando realizou a prova, em 1966, frente à Alemanha Ocidental. O jogo terminou empatado a dois. Foram precisos mais oito minutos para um novo golo: Geoff Hurst, avançado do West Ham United, fez os ingleses saltarem de alegria. E os alemães, indignados, protestarem como loucos. Para eles, a bola não tinha entrado na baliza de Hans Tilkowski. Não na totalidade. Não tinha sido golo. O árbitro Gottfried Dienst e o seu auxiliar entenderam que sim. A Inglaterra voltou a colocar-se na frente, cavalgou definitivamente para a vitória, Hurst ainda marcaria mais um para juntar ao bis que já fizera e os britânicos venceram em casa. Pela primeira. Pela única vez na sua história. Os alemães, na sua frieza, vingar-se-iam. Não se ficam.

Para se voltarem a encontrar num Mundial foram precisos quarenta e quatro anos. Jogaram, agora, nos oitavos-de-final do Campeonato do Mundo de 2010. A Alemanha entrou bem, marcou dois golos, submeteu os ingleses. A Inglaterra, em alerta, respondeu com um golo de Matthew Upson. Depois lá veio a vingança. Como se fosse em 1966, com os papéis invertidos, com os alemães a rir e os ingleses a puxar pelos cabelos. Lá está: o futebol coloca tudo de pernas para o ar, é sarcástico, tem requintes de malvadez e, a mais ou a menos tempo, faz com que quem ficou triste antes seja agora recompensado. Lampard rematou forte, em jeito, a bola bateu na trave da baliza de Neuer e caiu dentro da baliza. Bem dentro, sem dúvidas, meio-metro para além da linha. Jorge Larrionda deu ordem de continuidade. Ouviu aí as gargalhadas de Tilkowski?

Feitas as contas, passando por cima desse golo-que-foi-mas-não-valeu, a Alemanha marcou quatro golos e a Inglaterra apenas um. É uma vitória clara, robusta e inequívoca dos alemães. O remate de Hurst, em 1966, não deveria ter contado mas, como o árbitro suíço o validou, contribuiu para o título mundial conquistado pelos ingleses. Agora, em 2010, ainda nos oitavos, o remate de Lampard, que daria o empate, não valeu para nada. A vingança, fria como se quer, está servida. A Inglaterra, que fora superior, saiu vergada à sua maior derrota de sempre numa fase final. O veneno servido há quarenta e quatro anos, destroçando as pretensões alemãs, foi retribuído. O futebol permite-o. O conservadorismo de quem manda nele também. Passaram mais de quatro década e a decisão, apesar de todos os avanços, continua nas maõs de dois homens...

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